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sexta-feira, março 02, 2007

da morte II

Tenho poucas pessoas que me tenham morrido. Sinto-me sortuda por isso. Sei que, inevitavelmente, essa situação tender-se-á a alterar. Leis da vida e da morte. Mas não paro muito a pensar nisso. Cada um protege-se como pode e sabe.
Das pessoas mais próximas e da família, nesta lista de perdas, consta um avô materno. Sempre tivemos uma relação difícil. A avó sempre foi, e é, uma referência. O avô o contrário. A referência pela negação. Machista, teimoso e pouco lutador no fim da vida são das coisas que mais me lembro quando penso nele. Das coisas boas de que me recordo constam a sua vontade de cultivar a boa parecença; aprumado, cuidadoso, barba bem feita e pele morena, cabelo negro até ao último momento. Herdei a minha costela afectiva de alentejana com ele. Caçador de longa data, fora um calcorreador das terras do Alentejo pelas quais tinha um amor e uma ligação na escala das heranças reais. Lembro-me de quando me contava das carroças de ciganos com os quais se cruzavam nos dias de caça. De como as longas cabeleiras negras das mulheres eram deixadas a luzir através da paciência e do petróleo.
Lembro-me que sofri a morte dele por contágio solidário, uma osmose dos afectos. Sofri muito por ver a minha avó a sofrer tanto. Chorei por vê-la e senti-la a chorar. O que eu abracei nesses dias foi o corpo dorido e perdido dela. E ela, a grande mulher da minha vida, sobreviveu à perda. Como sobreviveu a uma vida de luta, de pobreza, de quase inevitável condição de exclusão. Sofreu e sobreviveu à minha abrupta e violenta saída de casa. Sofreu e sobreviveu à distância que a ausência dos netos – por emigrações académicas – lhe impôs. Quando a bisneta que lhe herdou o nome estava para nascer, entristeceu. Imaginou-se excluída de mais este ciclo familiar. Mas, lutadora como sempre, cá anda. E à E. pequenina já se contam quase 17 meses. E como se gostam, E. pequena e E. grande... como se sentem empáticas. Adivinharão o que as une?
Hoje, do cimo dos seus oitenta e tal anos, continua a ser âncora e força da natureza. Esteja eu à altura dessa linha de mulheres da qual nasci.
Comecei o texto pensando que ia falar de uma outra mulher, também âncora para o meu crescimento e que, infelizmente, já não vive. Pertencia à minha família dos afectos. Acho que nunca soube como a sua imagem sempre me acompanhou. Falarei dela noutro tempo.

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